---
– O Julgamento no Salão Dos Ursos.
Antes da comitiva partir, a tensão se espalhava como fumaça. Nobres cochichavam nos corredores, e o medo do desconhecido dava espaço para a velha covardia dos palácios: achar um culpado para o inominável.
Durante uma reunião no Salão Dourado, Lorde Meirell, da Casa da Águia , levantou-se com uma expressão carregada de hipocrisia e piedade fingida.
— Com todo o respeito ao Conselho e à dor da Princesa Kátyra — disse, olhando de soslaio para Cora e Aelys— é preciso considerar que o mal pode ter brotado de dentro. De dentro da própria linhagem...
Todos se entreolharam. A respiração do salão prendeu-se.
— O menino... o bastardo — disse ele, com a voz mais firme agora — adoeceu primeiro. Disse que era a chave. Ele pode ser um... catalisador. Um filho marcado por sangue impuro. Quem garante que não foi o sangue do Ataxa que despertou a praga?
Silêncio sepulcral.
Dimitry levantou-se sem pressa. Nenhuma emoção no rosto. Nenhum sinal de fúria — o que era ainda mais assustador.
Ele caminhou até Lorde Meirell. O salão inteiro observava como se o tempo houvesse congelado.
— Você tem cinco minutos.
— Majestade...?
— Cinco minutos, para provar o que disse. Prove, com magia, testemunhas ou verdade divina, que meu neto é o causador da praga. Que ele é culpado. Caso contrário... será executado por traição e difamação em tempo de guerra.
Meirell empalideceu. Balbuciou. Procurou apoio entre os outros senhores. Ninguém se moveu. Nem um só aliado.
— Três minutos — disse Dimitry.
— Eu... eu apenas sugeri uma possibilidade! Pelos céus, eu não quis—
— Dois.
— Por favor, Majestade, eu tenho fil—
— Um.
Dimitry sacou a lâmina curta cerimonial que trazia no cinturão. Era prateada, com inscrições de justiça da Casa do Urso. Meirell caiu de joelhos.
— Eu retiro o que disse! Pela minha casa, pela minha honra, eu—
O corte foi limpo. Silencioso. E definitivo.
O corpo tombou para o lado. Dimitry olhou para os outros presentes com frieza glacial.
— Se o mundo está desmoronando, que desmorone.
Mas meu neto não será queimado vivo para acalmar a covardia de quem nunca sujou as mãos na linha de frente.
E então se virou para Tharion, do outro lado do salão.
— Traga-o de volta. Custe o que custar.
---
– A Herança do Chicote
O pátio de armas estava silencioso como um templo. O céu, cinzento e baixo, parecia pesar sobre os ombros dos quatro que partiriam: Kátyra já montada em seu cavalo de crina escura, Tharion ajustando as armas, Aelys observando o horizonte com olhos de águia, e Orren concentrado, sussurrando encantamentos de proteção.
Mas antes da partida, Dimitry chamou a filha.
Ela hesitou. O coração acelerou — não por medo de monstros, mas por saber que havia algo mais profundo no olhar do pai. Algo que nem mesmo Tharion compreendia.
O encontrou sob as arcadas do palácio, onde o vento sibilava como as antigas canções da Casa do Urso.
— Quer que eu fale contigo como rei ou como pai? — perguntou ele, sério, sem rodeios.
Kátyra engoliu seco. Sentiu os joelhos amolecerem um pouco.
— Como... pai.
Ele assentiu.
Sem dizer nada, Dimitry caminhou até uma arca próxima, de ferro e madeira escura. Abriu-a. De lá, tirou um objeto envolto em linho antigo. Ao desembrulhar, revelou-se um chicote de couro trançado, com o cabo entalhado com o brasão do urso.
— Esse era o de Adam. Meu pai.
— Pai...? — murmurou Kátyra, um pouco pálida.
— Ele nunca precisou usá-lo em mim — disse Dimitry, com calma fria. — Mas sempre o deixava à vista, como lembrança de que os erros da linhagem têm peso. Peso real. Sangue real.
Kátyra sentiu o suor nas mãos. Ficou muda.
Ele se aproximou e colocou o chicote na mão dela.
— Eu nunca vou usá-lo em você.
Mas você deve lembrar de que um dia talvez tenha que usá-lo em si mesma.
— O que isso quer dizer? — ela sussurrou.
— Que há decisões que nem o amor, nem a coroa, podem justificar. E você... terá que tomar uma dessas em breve.
Por um instante, tudo ficou em silêncio entre os dois.
Então Dimitry se virou e gritou com a voz de comandante:
— MONTEM!
Kátyra engasgou no susto, prendeu a bainha da espada na perna e correu apressada em direção ao cavalo — tropeçando no manto e quase esbarrando em Orren, que murmurou:
— Que as deusas te guiem, princesa desastrada.
Tharion riu discretamente, montando com facilidade. Aelys ergueu uma sobrancelha.
— Graciosamente apressada como sempre, Alteza.
Kátyra lançou um olhar mortal para os três enquanto montava rapidamente e ajeitava a postura com dignidade forçada.
— Não comentem uma palavra sobre isso.
Tharion sorriu, com o olhar suave:
— Eu prometo... pensar bastante antes de zombar de novo.
Ela bufou, mas seus lábios traíram um meio sorriso. Então fitou o portão do norte.
O mundo lá fora era cruel. Mas algo dentro dela — talvez o peso daquele chicote ancestral — dizia que ela estava pronta. Ou teria que estar.
E então, partiram.
---