Cherreads

Chapter 74 - Véspera de Choro.

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Capítulo Véspera de Choro.

Ishelan não tinha rosto. Tinha uma sombra que mudava conforme o medo da vítima.

Diziam que era um anjo esquecido, um fruto podre do céu que caiu entre os homens como praga. Mas Ishelan não andava — ele surgia. E onde surgia, o tempo se curvava, as folhas escureciam e os sinos paravam de tocar.

Não empunhava espadas. Não gritava comandos.

Ishelan apenas olhava.

E as crianças… sumiam.

As mães, depois, continuavam chamando.

Os pais enlouqueciam.

As vilas viravam ruínas sem precisar de fogo.

Voltrhuk, o açougueiro da Fronteira Norte, pelo menos derramava sangue no campo de batalha. Havia alguma lógica, ainda que cruel, em sua brutalidade. Mas Ishelan…

Ishelan levava esperança pela raiz.

Despedaçava sonhos com o gesto de uma mão translúcida.

E deixava um gosto de cobre nos céus por onde passava.

--- Três lordes

O crepitar da lareira era a única música naquele salão elegante.

Três lordes.

Dois bebericavam vinho, rindo baixo como hienas diante de uma carcaça real. O terceiro — anfitrião — observava em silêncio, sentado em uma poltrona de encosto alto, os dedos entrelaçados diante do queixo.

— Dimitry não resistirá a outra onda de ataques — dizia um dos visitantes, enchendo novamente a taça. — E sua filha… bem, está marcada. Talvez seja hora de escolher um novo norte.

— Se unirmos forças com Erizy — completou o segundo — teremos garantias. Os Darxas são organizados. E estão dispostos a negociar. O que o senhor acha, lorde Varrek?

Lorde Varrek se ergueu lentamente.

A sombra dele se esticou nas paredes como se sentisse nojo da conversa.

Ele caminhou até o armário, onde repousavam três garrafas idênticas. Abriu uma, serviu duas taças. Levou aos visitantes.

Eles aceitaram, sem cerimônia.

Beberam.

— Sabe… — disse Varrek, olhando o fogo — Quando eu era menino, ouvi dizer que a honra era o que separava os nobres dos vermes.

Os dois visitantes riram, sem entender.

Segundos depois, tossiram.

Cuspiram sangue.

Os olhos vidraram.

Varrek ficou em silêncio, até que o último som da morte cessasse.

Então chamou um criado.

— Leve os corpos para a casa das cinzas. E mande meu cavaleiro pessoal levar esta mensagem ao rei Dimitry:

“Dois traidores buscaram aliança com a sombra.

Foram julgados na mesma noite.

Alguns de nós ainda nos lembramos de Adam.”

O servo partiu.

Varrek voltou para sua poltrona.

Tomou um gole da própria taça — de uma garrafa diferente — e murmurou para o fogo:

— Queimar traidores é o único pacto que ainda mantenho.

---A queda estava às portas.

O salão do trono respirava como um animal ferido, o ar pesado com fuligem e o odor acre de tochas apagadas. O rei Dimitry percorria os ladrilhos gastos, seus passos ecoando mais alto que os estandartes esfarrapados que pendiam das paredes. Não havia sono para ele — não enquanto o crepitar das fogueiras inimigas riscava o horizonte, não enquanto os aposentos das crianças permaneciam vazios, intocados desde o rapto.

De repente, o silêncio quebrou-se como vidro sob uma bota. Um criado irrompeu pela porta, o rosto banhado em suor e terror. "Sua Majestade... o mensageiro chegou."

Dimitry cerrou os punhos. As palavras não precisavam ser ditas: os sinos do leste já não badalavam, os campos do norte ardiam em silhuetas contra a noite. O mensageiro traria o ultimato — ou a confissão de uma traição. Seus dedos roçaram o punho da espada, enferrujado por dias de inação.

"Amanhã seria tarde."O reino só cairia se ele "já não estivesse de joelhos."

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Kátyra e a Canção da Avó

O sonho começou como sempre começava: com o vento.

Um sopro fresco, carregado do perfume das *flores de Lys*, aquelas que só floresciam nos jardins secretos do palácio. E então, como se o tempo desfizesse suas costuras, ela estava lá — a rainha Moira, sentada em seu banco de mármore, os cabelos prateados como a lua sobre o lago.

— "Minha flor guerreira", a voz da avó era um acalento que Kátyra não ouvia há anos. — "Por que carregas o mundo nos ombros, se nem mesmo Atlas conseguiu?"

Kátyra caiu de joelhos, as lágrimas queimando como fogo.

— "Avó, eu não aguento mais. Cada noite é um silêncio que me devora. Preciso sentir Titos em meus braços, ou vou ruir. O que adianta um trono, se meu filho não pode me chamar de mãe?"

Moira estendeu as mãos — tão reais que Kátyra quase sentiu as veias salientes, as mesmas que a embalaram em noites de tempestade.

— "Escuta, criança minha: o amor não é uma fraqueza. É a única armadura que os tiranos não conseguem romper."Seus dedos limparam as lágrimas de Kátyra. — "Você pensa que o palácio é feito de pedra? Não. É feito de escolhas. E você escolherá seu filho, mesmo que o mundo arda."

E então, como outrora, a velha rainha começou a cantar. Era a "Canção do Espinheiro", aquela que falava de raízes que crescem mesmo sob a neve. Kátyra fechou os olhos, deixando a melodia envolvê-la como um manto.

— "Não tema a escuridão, minha estrela. Até a noite mais longa cede ao amanhecer."

Quando acordou, "o cheiro de jasmim ainda pairava no ar".

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