-O Eco da Culpa
A noite caiu como um véu de cinzas.
Enquanto o grupo dormia disperso pelas alas da nova mansão, Tharion ficou sozinho no pátio, encarando o céu sem estrelas. O medalhão de cristal pesava em sua mão como se fosse feito de pedra.
A relíquia.
A escritura.
O decreto.
E por fim... aquelas palavras:
"Estou grávida."
Ele fechou os olhos, pressionando a mandíbula até que doesse. Sentia ainda o calor da bofetada no rosto, mas o que queimava de verdade era o silêncio que veio depois. O silêncio entre eles. O vazio que ela deixou ao virar as costas.
Kátyra estava certa em tudo.
Ele a comparou com Erizy.
Ele a envergonhou. Desonrou.
E no fundo, o que mais doía... era saber que fez isso por medo.
— É assim que se destrói algo belo — murmurou para si mesmo. — Com palavras afiadas demais para quem já sangra por dentro.
Ao longe, ouviu um riso abafado vindo dos corredores. Orren e Aelys. Ecos de vida que seguiam. De gente que tentava.
Ele sentia que ficaria para trás. E merecia.
Quando se virou para voltar para dentro, deu de cara com algo inesperado: a carta de Kátyra, cuidadosamente deixada sobre a fonte de pedra. Alguém a havia colocado ali. Talvez Orren. Talvez destino.
Tharion sentou, leu cada linha com os olhos marejando. Quando chegou à última palavra — "Com dor, Kátyra" —, as lágrimas caíram sem que pudesse conter.
— Você era tudo. E eu fui... Erizy. — sussurrou, como se cuspir o nome fosse uma maldição.
Ali, naquele jardim silencioso, ele finalmente quebrou. Sozinho. Sem plateia. Sem redenção. Apenas o começo de um homem tentando, de verdade, mudar.
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A Ponte Queimada
O amanhecer nas Terras do Clã do Dragão surgia dourado e frio. A névoa dançava entre as colunas da mansão como véus de um templo antigo.
Kátyra estava sentada no terraço superior, com as mãos envoltas por um pano branco. O cheiro do chá de vasluta silvestre,subia em espirais calmas, mas seu semblante era o de uma tempestade prestes a voltar.
Ela não chorava mais.
Já havia passado da fase das lágrimas.
Foi então que ouviu passos hesitantes. Não os passos confiantes e arrastados de sempre — mas quase... arrependidos. Quando ela se virou, Tharion estava ali.
Sem armadura.
Sem espada.
Sem o medalhão no pescoço — ele o segurava nas mãos, como se fosse algo sagrado.
— Vim... porque não consegui ir. — disse ele, encarando o chão.
Kátyra apenas o observou, calada.
Tharion deu mais dois passos. O rosto estava cansado, os olhos fundos, e as palavras pareciam doer mais do que qualquer ferida física.
— Eu li sua carta.
Li três vezes.
Cada frase... me esfolou por dentro.
Ela ergueu o queixo, dura.
— Eu não escrevi para arrancar arrependimento. Escrevi para me livrar dele.
— Eu sei. — ele sussurrou. — E mesmo assim, aqui estou.
Silêncio.
Ele se ajoelhou, não por formalidade, mas porque as pernas pareciam não aguentar mais o peso do orgulho.
— Kátyra... eu não vim te pedir nada. Vim te devolver. — estendeu o medalhão. — Isso. Seu direito de me apagar da sua história. De me deixar onde eu pertenço: no passado.
Ela olhou o objeto, mas não estendeu a mão.
— Você me comparou a um monstro. — disse, sem rodeios.
Tharion fechou os olhos como se tivesse levado um soco no estômago.
— Eu sei.
— Você duvidou de mim... no momento em que eu mais precisei de alguém que me lembrasse quem eu era.
— Eu sei.
— E mesmo assim, você está aqui.
— Porque eu ainda vejo você. Mesmo quando você não quer que eu veja. Mesmo quando você me odeia por isso.
Uma pausa pesada.
Kátyra ficou de pé. Caminhou até ele. Não pegou o medalhão. Mas também não foi embora.
Aproximou o rosto dele do seu.
— Eu não te odeio, Tharion. Mas não sei se ainda te amo.
Ele assentiu, engolindo em seco.
— Então me deixa merecer. Um dia de cada vez. Nem que leve uma vida.
E ela respondeu... sem palavra alguma.
Apenas estendendo a mão, dessa vez não para entregar ou receber algo — mas para ajudá-lo a se levantar.
E ele aceitou.
Tharion aceitou a mão dela. Não com a arrogância de quem se levanta por conta própria, mas com a humildade de quem sabe que precisa se reconstruir — e que isso começa por reconhecer quem estendeu a ponte.
Ele ficou de pé diante dela. Os olhos dele buscaram os dela, como se implorassem por algo que não sabiam nomear.
Mas Kátyra não deu respostas fáceis. Apenas caminhou até a borda do terraço, observando os ventos soprando das montanhas distantes.
— A propósito... — disse ela, sem virar o rosto — é uma menina.
Tharion franziu o cenho.
— Uma...?
Ela finalmente olhou para ele de lado. Um brilho contido — e ainda assim, impossível de ignorar — nos olhos de gelo.
— Minha avó me contou.
Em um sonho.
Por um instante, o tempo pareceu parar. Nenhum dos dois falou. Nenhum dos dois se moveu. O nome não foi dito. O futuro não foi revelado. Mas algo sagrado e silencioso se firmou ali.
Uma verdade que não precisava de mais nada.
Eles ficaram ali. Um pouco mais perto. Um pouco menos armados.
Sem garantias.
Mas com esperança.
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